Caio M.M. Azeredo Advocacia

O Ato Médico E O Preenchimento Do Prontuário Do Paciente

O prontuário do paciente é um instrumento de essencial importância para os médicos, para as empresas prestadoras de serviços de assistência à saúde, para os órgãos públicos envolvidos na regulação desses serviços – como, por exemplo, o Ministério da Saúde (MS), a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e os Conselhos Federal e Estaduais de Medicina (CFM e CRMs) – e para o Poder Judiciário. Todas as etapas do tratamento médico são registradas nesse documento e o seu correto preenchimento tem efeitos nas mais diversas áreas.

 

Além de regulamentar e definir o prontuário do paciente, a Resolução CFM n. 1.638/2002 faz obrigatória a criação da Comissão de Revisão de Prontuário nas entidades prestadoras de serviços médicos, sejam elas públicas ou privadas. A normatização pontua determinadas informações que se mostram, inicialmente, imprescindíveis para a compreensão desse documento.

 

  1. a) a elaboração do prontuário não é uma faculdade do médico, mas um dever;
  2. b) sua relevância ultrapassa a relação médico-paciente, visto que se mostra essencial para as empresas de saúde, para as faculdades de Medicina, para a pesquisa e para a defesa do profissional e ou da instituição em eventuais demandas judiciais;
  3. c) a entidade prestadora de serviços médicos é a guardiã – a depositária – do prontuário do paciente e, como tal, deve manter a sua supervisão permanente com o intuito de garantir a qualidade e a preservação adequada das informações ele inseridas;
  4. d) ele deve estar disponível em todos os ambientes da entidade médica para propiciar a continuidade do tratamento ao paciente: pronto socorro – emergência –, ambulatórios e enfermarias.

 

O art. 1º da Resolução CFM n. 1.638/2002 define o prontuário do paciente como “o documento único constituído de um conjunto de informações, sinais e imagens registradas, geradas a partir de fatos, acontecimentos e situações sobre a saúde do paciente e a assistência a ele prestada, de caráter legal, sigiloso e científico, que possibilita a comunicação entre membros da equipe multiprofissional e a continuidade da assistência prestada ao indivíduo”. Este conceito está atrelado à própria etimologia do vocábulo: promptuariu denota o lugar onde se armazena algo que deve estar à disposição a todo instante. Segundo a doutrina especializada, o prontuário do paciente “é o documento que contém registrado todo o histórico de saúde do paciente, decorrente do atendimento que lhe foi prestado, contendo todas as informações relevantes a permitir o devido acompanhamento em momento posterior, bem como a efetiva comunicação entre todos os profissionais de saúde, mantendo-se de forma plena a continuidade assistencial.

 

O conteúdo do prontuário médico encontra-se normatizado pelo inciso I do art. 5º da Resolução CFM n. 1.638/2002, dispositivo que trata da Comissão de Revisão de Prontuários:

 

  1. a) identificação do paciente;
  2. b) anamnese, exame físico, exames complementares solicitados e seus resultados, hipóteses diagnósticas, diagnóstico definitivo e tratamento prestado;
  3. c) evolução diária do paciente;
  4. d) nos prontuários em papel, é obrigatória a legibilidade da letra do médico assistente e a identificação dos profissionais que participaram do atendimento ao paciente – com a inclusão do número do CRM e a assinatura dos profissionais;
  5. e) nos casos emergenciais, na hipótese de impossibilidade de colheita do histórico através de relato do próprio paciente, é obrigatório o relato médico completo acerca dos procedimentos realizados e que tenham proporcionado o diagnóstico e ou a remoção do enfermo para outra unidade.

 

No mesmo diapasão, o § 1º do art. 87 do Código de Ética Médica (Resolução CFM n. 2.217/2018) preceitua que “o prontuário deve conter os dados clínicos necessários para a boa condução do caso, sendo preenchido, em cada avaliação, em ordem cronológica em data, hora, assinatura e número de registro do médico no Conselho Regional de Medicina”.

 

O caput do mencionado art. 87 tipifica como infração ética disciplinar “[d]eixar de elaborar prontuário legível para cada paciente”, ou seja, o dever do facultativo não se restringe à elaboração desse documento médico, mas exige que ela seja feita de modo “legível”. E aqui não se trata apenas da tradicional questão relacionada à qualidade da letra do médico – haja vista a realidade dos prontuários eletrônicos –, mas à compreensibilidade do que o profissional inseriu no documento. De nada adiantaria digitalizar a produção do prontuário e o médico ali registrar as informações de modo ininteligível, com anotações esparsas e desconexas. Como ressaltam Eduardo Dantas e Marcos Coltri, “a incorreta e incompleta documentação dos atendimentos médicos prestados é uma realidade agravada pelo fato de que “o médico, via de regra, não sai preparado da faculdade de Medicina para fazer as devidas anotações no prontuário de seus pacientes.

 

O prontuário do paciente, se preenchido sem o respeito aos requisitos que compõem a sua regularidade formal, pode configurar infração ético-disciplinar não só em decorrência de eventual dano causado ao enfermo, mas também em razão de o capítulo III do Código de Ética Médica preceituar ser vedado ao médico “[d]esobedecer aos acórdãos e às resoluções dos Conselhos Federal e Regionais de Medicina ou desrespeitá-los” (art. 18).

 

A Resolução CFM n. 2.056/2013, por seu turno, prescreve norma de suma importância: a justificação dos atos praticados pelo médico. Segundo o seu art. 45, “[q]ualquer tratamento administrado a paciente deve ser justificado pela observação clínica e registrado no prontuário”, isto é, as decisões e os procedimentos realizados pelo médico devem ser não só inseridos no prontuário de forma legível e compreensível, mas também justificada. E nesse aspecto esse documento médico ganha relevância na defesa dos facultativos nas ações indenizatórias propostas pelos pacientes: a adequação do atuar médico será verificada também em decorrência da justificação de seus atos, ou seja, levando em consideração os motivos pelos quais o profissional decidiu e agiu de determinado modo.

 

A elaboração do prontuário do paciente configura um ato médico, que, como tal, produz profundos reflexos na avaliação da conduta do profissional. As atividades privativas dos médicos, consoante preconizadas na Lei n. 12.842/2013 (art. 4º, incisos II a VII e X a XIV), não podem ser operacionalizadas sem o obrigatório registro no prontuário, o que autoriza afirmar que a regularidade desse documento está inexoravelmente intrincada a todo e qualquer procedimento praticado pelo galeno.

 

Segundo a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça,  “a conduta deliberada do médico em omitir o preenchimento adequado do prontuário revela, juridicamente, falta de cuidado e de acompanhamento adequado para com a paciente, descurando-se de deveres que lhe competiam e que, se observados, poderiam conduzir a resultado diverso ou, ainda que o evento danoso tivesse que acontecer de qualquer maneira, pelo menos demonstrar que toda a diligência esperada e possível foi empregada, podendo o profissional inclusive valer-se desses mesmos registros para subsidiar a sua defesa.

 

Na fundamentação do aresto, o Ministro relator menciona que o recorrente alegara que o preenchimento inadequado ou omisso do prontuário médico não teria relação causal com o dano alegado.

 

Como se observa, o recorrente trabalha com a interpretação de que a falta de preenchimento adequado do prontuário médico não teria relação causal naturalística (típica das ciências naturais) com o resultado danoso sofrido pela recorrida (sequelas neurológicas graves e irreversíveis), postulado expressado pela teoria da equivalência dos antecedentes (ou das condições) ou da conditio sine qua non.

Contudo, também sem razão o recorrente.”

 

O acórdão entendeu, contrariamente à posição do recorrente, que a incorreta elaboração do prontuário demonstrava estreita ligação com o liame de causalidade e com o evento danoso. E mais: a decisão ressalta que a ação havia sido julgada improcedente nas instâncias ordinárias em relação ao terceiro requerido, também médico, uma vez que o preenchimento do prontuário por ele realizado mostrara-se adequado.

 

“No caso em apreço, a conduta deliberada do recorrente em omitir o preenchimento adequado do prontuário está a revelar, juridicamente, não apenas o desatendimento de um ônus simplesmente burocrático, mas a sua falta de cuidadoe de acompanhamento adequado para com a requerida, descurando-se de deveres jurídicos (legais e obrigacionais) que lhe competiam e que, se observados, poderiam conduzir a resultado diverso ou, ainda que o evento danoso tivesse que acontecer de qualquer maneira, pelo menos demonstrar que toda a diligência esperada e possível dentro da medicina foi empregada (obrigação de meio), podendo o profissional inclusive valer-se desses mesmos registros para subsidiar a sua defesa (deixando de fazê-lo, não demonstrou a ausência de adequação ou de necessariedade da causa que lhe foi imputada).

Tanto é verdade (que o recorrente podia e devia ter agido de modo diverso) que o terceiro réu, o médico pediatra, também foi demandado nesta ação e, mediante os registros que apresentou nos prontuários médicos, devidamente preenchidos, teve o pedido formulado contra si julgado improcedente.”

 

O REsp n. 1.698.726-RJ, portanto, é um exemplo claro sobre os efeitos da incorreta e da correta elaboração do prontuário do paciente: da mesma maneira que o reconhecimento da incorreção do preenchimento dos registros médicos por um dos médicos requeridos serviu de motivação para a sua condenação, a correção da confecção do mesmo documento médico foi o fundamento para que a demanda indenizatória fosse julgada improcedente em face do médico terceiro requerido.

 

“Assim, à luz da teoria da causalidade adequada, restou atendido o pressuposto do nexo de causalidade, pois a falta de monitoramento dos sinais vitais do feto e da gestante/parturiente (o que, segundo o acórdão recorrido, só foi realizado quando a recorrida deu entrada no hospital, às 7h30, ficando sem nenhuma outra anotação até o momento do parto, às 13h, isto é, mais de 5 (cinco) horas sem o devido acompanhamento – fls. 873-874 e-STJ), revelada a partir da omissão deliberada do profissional em registrá-los devidamente no prontuário médico, consubstancia-se em falta de dever de cuidado (necessário e esperado) e de acompanhamento adequado, a conjugar e estabelecer liame entre a conduta negligente e o resultado danoso.

Essa conduta, além de vedada pelo Código de Ética Médica (Res. CFM nº 1.931/2009), viola também deveres legais previstos na Lei nº 12.843/2013 (que regulamenta o exercício da medicina e, em seu art. 2º, prescreve o dever de agir com o máximo zelo, com o melhor da sua capacidade profissional) e no Estatuto da Criança e do Adolescente, podendo configurar, inclusive, crime (arts. 10, I e IV, e 228 da Lei nº 8.069/1990), conforme registrado no acórdão recorrido (fls. 875-876 e 890-892 e-STJ).

Nesse passo, o recurso também não prospera quanto à alegada ausência de nexo de causalidade.”

 

As questões atreladas ao prontuário igualmente afetam as instituições de saúde. O art. 2º da Resolução CFM n. 1.638/2002 dispõe que a responsabilidade por tal documento cabe não só ao médico assistente e aos demais profissionais que atuaram no atendimento à saúde do paciente, mas também à hierarquia médica da instituição em decorrência do dever de zelo pela qualidade da prestação dos serviços médicos.

 

“Art. 2º – Determinar que a responsabilidade pelo prontuário médico cabe:

  1. Ao médico assistente e aos demais profissionais que compartilham do atendimento;
  2. À hierarquia médica da instituição, nas suas respectivas áreas de atuação, que tem como dever zelar pela qualidade da prática médica ali desenvolvida;

III. À hierarquia médica constituída pelas chefias de equipe, chefias da Clínica, do setor até o diretor da Divisão Médica e/ou diretor técnico.”

 

Ilustra bem a extensão da norma acima transcrita o entendimento da Primeira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. A condenação do hospital ao pagamento de indenização ao paciente arrimou-se na circunstância de a ilegibilidade do quanto registrado pelo médico no prontuário haver prejudicado o laudo pericial, que por tal motivo restou inconclusivo.

 

“(…) Laudo pericial inconclusivo por apresentar o prontuário médico grafia ilegível – Inversão do ônus probatório – Inteligência dos artigos 373, § 1º do Código de Processo Civil e 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor – Responsabilidade do hospital de produzir as provas – Inocorrência – Dano moral configurado – Abalo físico e psicológico que vai além do mero dissabor e desconforto – Valor indenizatório fixado em patamar justo e razoável – Recurso desprovido.”

 

A elaboração do prontuário do paciente, destarte, representa elemento de essencial relevância tanto para os profissionais quanto para a instituição de saúde. O conhecimento e a efetiva aplicação das normas – administrativas e legislativas – que regem a correta confecção desse documento médico são relevantes para prevenir e se defender de forma efetiva nas ações indenizatórias. Para isso, a atuação de profissionais da área jurídica com expertise em direito médico e da saúde é essencial.

 TJSP, 1ª Câmara de Direito Privado, Apelação n. 0050674-25.2013.8.26.0002, relator Desembargador Luiz Antonio de Godoy, julgado em 10/04/2019 e publicado em 10/04/2019.


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