A Lei 11.635/2007 instituiu o dia de hoje (21 de janeiro) como dia de combate à intolerância religiosa.
Referida data fora uma homenagem à lalorixá Mãe Gilda de Ogum (Gildásia dos Santos e Santos) que teve seu terreiro em Salvador (BA) invadido por vândalos em 21 de janeiro de 2000, vindo a falecer de infarto fulminante em decorrência da violência sofrida.
Nossa Carta Magna, promulgada em 1988, em seus artigos 3º e 5º, inciso VI garante a todo cidadão a liberdade de crença religiosa.
Do ponto de vista jurídico, muitas são as discussões envolvendo o tema que demandaram decisões do nosso Supremo Tribunal Federal nestes últimos anos, tais como: recursa a transfusão sanguínea pelas Testemunhas de Jeová, a guarda do sábado pelos Adventistas do Sétimo dia, o uso de roupas e acessórios religiosos em documentos oficiais pelas freiras, a possibilidade de existir símbolos religiosos nos prédios da Administração Pública, dentre outros.
Neste artigo vamos nos ater ao reconhecimento pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal do direito das Testemunhas de Jeová a tratamentos médicos alternativos, trazendo a baila o debate sobre os custos dos direitos.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar os Recursos Extraordinários nº. 979.472 e 1.212.272, em setembro de 2024, decidiu que os adeptos da corrente religiosa denominada Testemunhas de Jeová dispõem do direito de recusar-se a tratamento médico que envolva transfusão de sangue. Os recursos, relatados respectivamente pelos ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, ocasionaram a fixação dos Temas 952 e 1.069 da Repercussão Geral.
Os Testemunhas de Jeová representam um movimento religioso cristão de índole protestante, fundado nos Estados Unidos da América do Norte em 1874 por Charles Russsel. É uma religião missionária, embora não possua sacerdotes e não professem qualquer espécie de culto. “Atualmente, contam com cerca de quatro milhões de fiéis, espalhados por mais de 200 países, inclusive o Brasil, onde o movimento surgiu em 1923 e continua plenamente atuante, reunindo mais de 800 congregações com cerca de 40 mil ministros”[i]. Malgrado a questão da vedação a tratamentos médicos com transfusão sanguínea seja a mais conhecida, os adeptos dessa vertente cristã “recusam o serviço militar, não bebem nem fumam e praticam o batismo por imersão”[ii] e “estão absolutamente convencidos de que formam um conjunto de cristãos devotos num mundo corrompido”[iii]
O Tema nº. 1.069 da Repercussão Geral, ligado ao Recurso Extraordinário n. 1.212.272, trata do direito das pessoas ligadas a essa religião de submeterem-se a tratamento médico em que não haja a transfusão de sangue, “em razão da sua consciência religiosa”[iv]. O Tema nº. 952, por sua vez, correlacionado ao Recurso Extraordinário n. 979.742, reconheceu a repercussão geral na ponderação entre os princípios constitucionais da igualdade e da razoabilidade e o direito à liberdade religiosa como fundamentos ao dever estatal de custear tratamento à saúde desprovido de transfusão de sangue, ainda que tal procedimento não esteja disponível no Sistema Único de Saúde”[v].
As questões colocadas nos mencionados temas, portanto, consubstanciam-se no direito à liberdade religiosa como arrimo à recusa de tratamentos médicos com transfusão de sangue e no dever do Estado de, com base na interpretação dos princípios da isonomia e da razoabilidade, arcar com as despesas com tal assistência médica, ainda que a rede pública de saúde do domicílio do paciente não disponha de tal técnica médica. Consoante André Olivier e Lucca Moro Costa, “a corte viu-se diante da seguinte questão: é legítimo que pacientes recusem determinado tratamento médico com fundamento em convicções religiosas? Se sim, deve o Estado brasileiro, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) custear alternativa ao tratamento anteriormente recusado?”[vi]
Nas decisões proferidas nos Recursos Extraordinários citados, vê-se o entrelaçamento entre o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e a concepção contemporânea de autonomia individual – na qual está ínsita a liberdade religiosa como componente da construção da própria personalidade, haja vista que a dimensão espiritual é um dos elementos constitutivos da dignidade, inclusive no que pertence à identidade da pessoa[vii]. Tal estatuto, como pondera Jayme Weingartner Neto, confere à liberdade religiosa, como integrante do Estado Democrático de Direito, o estatuto de um postulado cuja interpretação deve ser ampliada, a fim de garantir “a mais ampla e livre (con)vivência religiosa com os valores constitucionais basilares (igual dignidade e liberdade, pluralismo intercultural, justiça social)”. Assim, continua o constitucionalista, “deve-se operar com um conceito amplo de liberdade religiosa e de religião (um âmbito normativo alargado)”[viii].
Esses recentes julgamentos da Corte Suprema refletem uma interpretação voltada àquilo que o ministro Luís Roberto Barroso de “efetividade ou eficácia social da norma”; segundo ele, a par dos planos normativos da existência, validade e eficácia, há um quarto, “que por longo tempo fora negligenciado: o da efetividade ou eficácia social da norma”. Efetividade, para ele, “significa a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-se normativo e o ser da realidade social”[ix]. Não se trata de “otimismo juridicizante”[x] ou “da crença desenganada de que é possível salvar o mundo com papel e tinta”[xi], mas de aplicação da norma constitucional em toda a extensão possível[xii].
Os Recursos Extraordinários n. 1.212.272 e 979.742 também enfatizam que a autodeterminação do paciente testemunha de jeová e seu direito de não se submeter a tratamento com transfusão de sangue devem se vincular ao seu convencimento livre e esclarecido – concepção encartada no Enunciado n. 40 da 1ª Jornada de Direito à Saúde[xiii], realizada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (13 e 14 de junho, Brasília)[xiv].
No que concerne especificamente ao Tema n. 952 da Repercussão Geral do STF, temperos podem melhorar o sabor do debate. O direito das testemunhas de jeová a não se submeter a tratamentos médicos sem a transfusão de sangue cria para tais pessoas o direito à criação de custos de exercício desse direito para o Estado?
Interessante verificar que no caso Roe vs. Wade a Suprema Corte estadunidense declarou que a Constituição americana protege o direito das mulheres ao aborto. No entanto, em Maher vs. Roe, o mesmo tribunal concluiu que a Carta Magna não impõe ao Estado o dever de custear as despesas com tal procedimento, mesmo sendo a mulher uma indigente. Guardadas as profundas diferenças – em seus vários aspectos – entre os sistemas de saúde dos EUA e do Brasil, é no mínimo interessante atentar-se para os argumentos daquela Suprema Corte ao decidir o segundo caso.
Segundo Stephen Holmes e Cass R. Sunstein, “A negação da cobertura pelo Medicaid, segundo os juízes, ‘não põe obstáculo algum – absoluto ou relativo – à possibilidade de que a gestante faça um aborto’. Isso porque ‘a mulher indigente que deseja fazer um aborto não sofre desvantagem alguma em consequência da decisão do Estado de custear partos’, pois o Estado não é responsável de maneira alguma pelo estado de penúria em que ela se encontra. Segundo a Corte, a recusa de aprovar uma tal lei por parte de uma assembleia legislativa estadual, embora possa na prática acarretar que uma indigente não possa fazer aborto, não viola de maneira alguma o ‘direito de escolha dessa mulher’”[xv]. Faz pensar. Se a condição indigente da mulher não pode ser transferida ao Estado e, portanto, à sociedade americanos – no que tange aos custos do direito ao aborto –, a condição de testemunha de jeová pode ser transferida ao Estado e, destarte, a toda a sociedade brasileiros[xvi].
A questão colocada acima, transplantada para o caso concreto das testemunhas de jeová, leva à necessidade de conjecturar até onde as especificidades presentes na sociedade serão tratadas de modo diverso do padrão legal. Em saúde, é preciso enfatizar, o debate ganha ingente relevo porque saúde não tem preço, mas tem custo. Ter os direitos à autonomia individual e à liberdade religiosa, no que concerne à área da saúde – há que se lembrar que a Constituição da República qualifica tais serviços como de relevância pública[xvii] (art. 197) –, pode gerar para o restante da sociedade um custo decorrente do exercício do direito de buscar um tratamento médico diferenciado, em razão das escolhas religiosas.
Diante da decisão acima, os advogados do nosso escritório poderão, doravante, orientar sua instituição de saúde a se resguardar ao atender seus novos pacientes, respeitando o ordenamento jurídico pátrio sem desfocar da blindagem à sua entidade e colaboradores.
Caio Marcelo Mendes Azeredo
Vanessa Contente Cantarino
[i] AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. Dicionário histórico de religiões, coautoria e edição Paulo Geiger, 2ª edição revista e atualizada (recurso digital), Rio de Janeiro: Lexikon Editora Digital, 2013, posição 9254.
[ii] Idem, ibidem.
[iii] Idem, ibidem.
[iv][iv] https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=1069, acesso em 03 de outubro de 2024.
[v]stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5006128&numeroProcesso=979742&classeProcesso=RE&numeroTema=952, acesso em 03 de setembro de 2024.
[vi] Direito das testemunhas de Jeová à recusa de transfusões de sangue, in Consultor Jurídico, disponível em O direito das Testemunhas de Jeová à recusa de transfusões (conjur.com.br), acesso em 03 de outubro de 2024.
[vii] WEINGARTNER NETO, Jayme. Comentários à Constituição do Brasil, coordenado por J. J. Canotilho e outros coordenadores: Ingo Wolfgang Sarlet, Lenio Luiz Streck, Gilmar Ferreira Mendes, 3ª edição revista e atualizada, São Paulo: SaraivaJur, 2023, livro eletrônico, posição 227.
[viii] Idem, ibidem.
[ix] BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo, 12ª edição, São Paulo: SaraivaJur, 2024, livro eletrônico, posições 174-175.
[x] Expressão de Pablo Lucas Verdú, citada por Luis Roberto Barroso, ob. cit., posição 174.
[xi] Idem, ibidem.
[xiii] “A intervenção médica ou cirúrgica em paciente adulto e capaz exige o seu prévio e expresso consentimento livre, consciente e informado, que inclui o direito de recusa, salvo a hipótese de emergência médica em que o paciente não possa externar a sua autodeterminação e não tenha deixado diretivas antecipadas de vontade que permitam ao médico conhecer as escolhas do paciente.”
[xiv] https://www.conjur.com.br/2024-set-04/autodeterminacao-do-paciente-no-brasil-avancos-no-cenario-nacional/.
[xv] O custo dos direitos: por que a liberdade depende dos impostos (livro eletrônico), tradução de Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2019, posições 56-57.
[xvi] Não se ingressa, nesta seara, no debate sobre os custos efetivos dos tratamentos alternativos – confeccionados e prestados sem a transfusão de sangue – em comparação com os tratamentos tradicionais.
[xvii] Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.